Linha de separação


3 de agosto de 2017

Derramar lágrimas

                      Waldemar Cruz
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Hoje só não será um dia decisivo para a Venezuela porque desde há muitos dias, todos os dias têm vindo a ser decisivos para um país posto a ferro e fogo. E também porque Nicolás Maduro decidiu adiar por 24 horas a instalação da nova Assembleia Nacional Constituinte, composta por 545 membros. A oposição estava a movimentar-se e a convocar manifestações na capital com o objetivo de impedir a entrada dos constituintes no Palácio federal legislativo, no centro histórico de Caracas. Mesmo se Maduro, como diz o El País, “opta pela prudência” ao retardar o que se adivinha venha a ser uma situação explosiva, teme-se o pior, depois de o responsável pela empresa que geriu o voto eletrónico ter anunciado, a partir de Londres, vários dias após o ato eleitoral, e a poucas horas da entrada em funções da nova Assembleia, que a taxa de participação na eleição terá sido manipulada. Não será de espantar que daqui a umas horas comecem os jornais e televisões a relatar novos atos de violência.

O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, afirmou ontem que Portugal acompanhava os restantes países da União Europeia no não reconhecimento da Assembleia Constituinte da Venezuela e sublinhou a necessidade de um regresso “à normalidade constitucional, com pleno respeito dos poderes dos órgãos eleitos, pela separação de poderes” com um apelo “muito veemente” para que “as partes recusem e renunciem a qualquer forma de violência “.

Os EUA já reconhecem às claras a disponibilidade para encontrar uma forma de substituir Nicolás Maduro. Afirmou-o o secretário de Estado Rex Tillerson, sem a preocupação de grandes eufemismos.

O título dado a este Curto impôs-se-me no final da madrugadade hoje ao entrar nas instalações da Impresa em Matosinhos. Junto à receção está reproduzida em tamanho gigante a capa do primeiro número da Revista Visão, datado de março de 1993, com o título “A Agonia de Angola”. Nela, a acompanhar um retrato brutal e dramático da violência resultante da guerra civil em Angola, uma quase criança interpela-nos com um olhar feito de interrogações e acusações, enquanto segura nos braços um corpo inerte. É isto que pode estar em causa na Venezuela.

A violência nas ruas tem vindo num crescendo absoluto. Essa constatação torna ainda mais chocante o que tem sido a parcialidade da generalidade da comunicação social portuguesa ao relatar a situação de um país onde vive uma vastíssima comunidade de portugueses ou de lusodescendentes.

Cria-se uma dicotomia inaceitável que implica, para diabolizar Nicolás Maduro e o seu governo, fazer de conta que do outro lado está uma oposição dirigida por figuras decentes e exemplares do ponto de vista da democracia. Não está, e afirmá-lo não pressupõe nenhum juízo de valor sobre as atuações de um presidente também ele eleito com o voto popular, tal como a maioria existente na Assembleia Nacional.

Esta é a mesma oposição, reunida à volta da Mesa de Unidade Democrática (MUD) – com Leopoldo López, Henrique Capriles e Maria Corina Machado - que anda desde 1993, com a primeira eleição de Hugo Chávez, a tentar tripudiar a desde então chamada revolução bolivariana. Esta é a mesma oposição que em 2002, descontente com as sucessivas vitórias eleitorais de Chávez, pegou em armas e desencadeou uma tentativa de golpe(elucidativo este documentáruio) para derrubar o governo legítimo. Esta é a mesma oposição que anda há mais de vinte anos a tentar por todos os meios, e sem exclusão de nenhum processo, inclusive a violência, a tentar uma radical alteração política sem outro programa que não seja o anti-chavismo.

Dizer isto significa concordar, apoiar ou defender Nicolás Maduro e o seu governo? Não. Cada um fará as suas interpretações do processo venezuelano. Não se pode é andar a clamar a existência de uma ditadura na Venezuela, a derramar lágrimas pela suposta falta de liberdade de imprensa, denunciar a existência de censura e, depois, adotar por cá uma atitude maniqueísta e de recusa de qualquer olhar isento e descomprometido sobre a realidade retratada (...) Expresso Diário

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