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23 de setembro de 2017

Junker e o Cabo da Roca - Colares



Os cenários europeus e a influência de Freud

O discurso de Juncker sobre o Estado da União Europeia vai dar que falar. Compreende-se. Sabendo-se que o “estado” da mesma não é grande coisa o exercício oratório afigurava-se difícil. Tanto mais que quanto maior é o número de “cenários” sobre o futuro europeu, e já vão seis, menos auspicioso se vislumbra a salvação do empreendimento.

É verdade que a matéria de forma foi mais glosada do que o seu conteúdo. Este, sim, inquietante para a soberania e os interesses de cada um dos povos. Entre a indignação e o despeito abundam os comentários sobre a gafe mais explicável do que alguns julgam por, numa penada, ter varrido Portugal da UE. Reconheça-se que a eloquência ornamental que Juncker escolheu para adornar o discurso - «não se enganem, a Europa estende-se de Vigo a Varna. De Espanha à Bulgária» - tinha de dar no que deu.
Haverá quem, por benevolência, atribua a imprecisão à ignorância geográfica. Admita-se que sim.
Se uma percentagem significativa dos norte-americanos (segundo inquérito realizado naquele País) não consegue localizar a Europa no mapa mundo, por maioria de razão Juncker pode não ter dado conta da localização de Portugal. Haja tolerância! Se há quem não descortine algo do tamanho de um continente, melhor se compreenderá que Juncker não dê conta de território bem menor.

Ressalvados os factos agora descritos, sempre se adiantará que isso de não colocar Portugal na União Europeia não é coisa que nos devesse atormentar. Agora pôr Portugal fora da Europa já é um pouco demais. Admitindo que a cultura de Juncker o levasse a conhecer a obra de Saramago, mesmo assim a criatura confundiu-se. É que no romance “A Jangada de Pedra” o que se separa da Europa é a Península e não o nosso País isoladamente. Não só um não foi com a outra como transformar metáfora em realidade só redundaria em asneira.

Mais cáusticos, há os que atribuem o deslize a disfunções que só Sigmund Freud e a sua psicanálise poderão explicar. Será no plano do subliminar e do inconsciente, e do que daí decorre do material (no caso, informação) não disponível à consciência ou ao escrutínio dos indivíduos, que o lapso pode ter explicação. Para todos os efeitos, o que os principais responsáveis pela UE vão revelando, de Juncker a Dijssebloem, é que Portugal não passa na sua óptica de peão de brega na reluzente arena política e económica em que bem se conhece quem são os “inteligentes”.  

O que seriamente nos deve inquietar não está no plano da forma mas do conteúdo. O que o presidente da Comissão Europeia veio anunciar foi a insistência no aprofundamento neoliberal, federalista e militarista da UE. Baseado na mesma e obsessiva atitude de fechar os olhos à realidade, branqueando responsabilidades da UE na crescente divergência e avolumar de problemas estruturais, decretando pela enésima vez que agora é que a coisa andará de vento em popa. A insistência no caminho da amputação da soberania dos Estados, acentuando a opção  federalista  com concentração ainda maior do poder político, com o fim da regra da unanimidade e instituição de regras maioritárias que porão uns a riscar zero e outros a determinar tudo, com a ambicionada criação de um super-ministro, agora já não só das finanças mas também da economia. A insistência das mesmas e desastrosas opções neoliberais com o alargamento do mercado único e com os crescentes desequilíbrios comerciais que daí decorrem em particular para os países mais vulneráveis como Portugal.  Ou a confirmada intenção de deriva militarista abraçada aos objectivos e projectos agressivos da NATO.

Perante sinais de desagregação, dos quais o Brexit é a ponta do icebergue, aí o vimos a brandir a ambição de colocar todos os países da UE dentro do colete-de-forças do Euro, impelindo nove estados-membros a nele se integrarem. Ignorando que se lá não estão é porque não querem e perceberam o desastre de se deixarem atrelar à moeda única. Daí o aceno promocional de «propostas irrecusáveis» para os eventuais aderentes. Quando o produto tem defeito nada como o saldar.

Para lá dos que estão estão ao comando deste processo há sempre os que, lestos e incapazes de disfarçar a sua costela federalista, correm atrás da cenoura que nestes momentos de aprofundamento da integração capitalista os seus mentores acenam. Regozijar-se  com a ideia da criação de uma “autoridade europeia para o trabalho”, apresentada como um factor para assegurar direitos idênticos entre países é de uma inocência pueril. A sua instituição, a não ficar na gaveta enquanto última prioridade da agenda europeia, não impedirá o prosseguimento do dumping social, das deslocalizações ou outros meios para continuar a assegurar a exploração do trabalho como vector fundamental do processo europeu.  A muleta da  dimensão social da integração europeia, cuja detecção nem com a mais perfeita das lupas se descortina, é desde sempre, apenas e tão só, o slogan que anima ilusões, descansa consciências e alija responsabilidades

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